quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Wall-E e os desafios éticos da automatização

“A máquina é aquilo pelo qual o homem se opõe à morte do universo…”

Gilbert Simondon

Wall-E (2008) (trailer) é um dos filmes da Disney mais aclamados pela crítica, mais bem cotados no IMDB, e talvez o mais provocador. É tido por alguns como genial e abominado por outros que o consideram propaganda esquerdista. Aborda principalmente dois assuntos que se relacionam: a acção devastadora da ideologia dominante e as implicações da evolução tecnológica.

Em Wall-E, a Axiom, nave espacial gerida pela companhia Buy&Large que transporta todos os seres humanos evacuados da Terra, é uma projecção da acção da ideologia dominante num estado muito avançado, crítico, em que o domínio sobre a sociedade é absoluto e o livre-arbítrio é quase nulo.

Recuso-me a considerar este cenário pós-apocalíptico uma hipérbole porque encontro na actualidade uma série de factores que apontam na sua direcção:

Dentro da Axiom, a marca da Buy&Large é a única e é abundante.

1) Nos últimos anos temos visto pequenas e grandes empresas a aglomerar-se, formando empresas cada vez maiores e mais poderosas. Estamos a ser progressivamente mais dominados por menos pessoas.

Dentro da Axiom, dois seres humanos deslocam-se em cadeiras flutuantes, cada um com um ecrã holográfico à sua frente.

2) A cadeira flutuante em Wall-E surgiu para permitir que a avozinha enfraquecida se deslocasse melhor na Axiom, mas rapidamente se tornou o meio de deslocação primário para todas as pessoas. Isto assemelha-se ao modo como a Internet surgiu para permitir comunicações à distância, e passou a ser uma forma natural de contactarmos com pessoas que nos estão próximas fisicamente. Estamos a esquecer-nos da importância do contacto físico por sucumbirmos à “comodificação como prática ideológica” (John Fiske em Introdução ao Estudo da Comunicação).

3) Essa comodificação não actua só sobre forma como nos deslocamos, mas também sobre como lidamos com a demanda imparável por quantidade de informação. Tecnologias emergentes como o Google Glass exaltam a superimposição de camadas de informação na nossa visão, que já não é suficiente para tomarmos conhecimento do mundo. Somos incapazes de estar desligad@s. (Now Generation, dos Black Eyed Peas, retrata bem este modo impaciente de estar na vida)

4) Há todo um espectáculo maravilhoso da tecnologia, que é sempre vendida como proporcionadora de grandes emoções, como já acontece no presente (tomemos como exemplo este vídeo de divulgação do mesmo Google Glass).

“Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do mundo dos homens”

Karl Marx (1993) «O Trabalho Alienado» in Manuscritos Económico Filosóficos. Lisboa: Ed. 70.

A ironia do filme reside no facto de os dois robots Wall-E e EVE serem as duas únicas personagens que demonstram initmidade e se preocupam com a vida e com o amor. A própria humanidade já não sabe porque vive.

Como chegaram àquela situação?

Nesta TED Talk, Jeremy Howard apresenta-nos a tecnologia do deep learning de forma muito clara, à parte o facto de não ir para além dos benefícios a curto e médio prazo, ignorando completamente as implicações a longo prazo. Foi uma óptima oportunidade para alertar as pessoas para a importância de se pensar estes assuntos, desperdiçada.

A substituição da mão-de-obra humana por maquinaria tem possibilitado à minoria dominante enriquecer ainda mais, anulando progressivamente as fontes de rendimento da maioria explorada e acentuando o desequilíbrio na distribuição da riqueza.

O documentário Humans Need Not Apply, por C.G.P. Grey, mostra-nos as implicações da automatização do trabalho e mostra-nos de que forma esta revolução inédita já está a decorrer, deixando-nos uma pergunta final alarmante: “o que fazer num futuro em que, para a maioria dos empregos, os humanos não são elegíveis”? Wall-E apresenta-nos uma resposta possível a esta pergunta.

“I was going with just the logic of what would happen if you were in a perpetual vacation with no real purpose in life.”

Andrew Stanton, realizador de Wall-E, em entrevista

E depois de Wall-E, por onde começar a reflexão?

A minha opinião pessoal sobre o desenvolvimento tecnológico foi muito influenciada pelas ideias de Baudrillard e Paul Virilio, por alguns rotulados como tecnopessimistas. Baseio-me na ideia de que a associação entre “rápido” e “melhor” é falaciosa para questionar esta cultura de aceleração constante e irreversível em que vivemos, em que se valoriza dogmaticamente a velocidade. Os benefícios da velocidade e do “mais fácil” são apenas miragens agradáveis deduzidas de uma projecção a curto prazo — a longo prazo os seus resultados são simplesmente desastrosos. A velocidade infinita é o fim de tudo. O que nos espera no final do caminho da aceleração é não mais do que o fim.

No entanto, já existe muito trabalho feito nesta área da pós-humanidade, da futorologia, do transhumanismo e das questões filosóficas e éticas que acarretam, e uma brevíssima pesquisa sobre estes temas fez tremer as minhas convicções sobre o progresso tecnológico: em comparação com toda esta investigação, são tão ínfimos os conhecimentos e leituras em que estão fundamentadas as minhas opiniões, que me sinto tentado a considerá-las crenças.

Wall-E e Humans Need Not Apply são apenas um forte primeiro alerta para a urgência de pensar o futuro da humanidade. A partir daqui o caminho é aprofundar estes temas, discuti-los e divulgá-los. Ou queremos caminhar às cegas em direcção a um futuro desconhecido...?